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Olhar de Fora

Primeira visita: 17 de junho

Por Aleone Higidio

 

“Tenho amigos que moram aqui no bairro e falam que aqui é favela. Eu não acho que aqui é favela”, disse Vinícius (19), em cima da laje de sua casa, no bairro Cabanas, quase no Parque Itacolomy.

“Têm mais de 20 anos que vim pra Mariana. Vim trabalhar nas mineradoras e fiquei por aqui. Minha esposa é de Mariana.” Jerson, aposentado, natural de Fonseca, distrito de Alvinópolis.

Essas duas frases que ouvi hoje só foram possíveis porque a preguiça num dia nublado não me derrubou. Queria muito ficar na cama, ainda mais depois de acordar às sete da manhã, passar duas horas num posto de saúde esperando atendimento e ficar o restante da manhã no dentista. À tarde, o sono me roubou e adormeci por algumas horas. Acordei às 15h apressado e corri para o ponto de ônibus a fim de conseguir subir ao bairro antes do anoitecer - confesso que teria medo de ir ao bairro durante a noite. Cheguei a Mariana por volta de 16h. Nunca vi um trânsito tão intenso num bairro de Mariana, além do Centro, como vi no Cabanas. Aliás, nem nos bairros de Ouro Preto há tanto sobe e desce de caminhões, ônibus de linha, carros populares - alguns de luxo - e motocicletas. Logo que comecei a subir a avenida principal, notei que o fluxo de veículos se intensificava com o passar dos minutos de caminhada. Esse trânsito intenso é muito comum em vias importantes de ligação entre a cidade e mineradoras ou próximo à BR, mas não imaginei que, ali, um bairro “isolado” pudesse haver trânsito intenso.

No meio do caminho encontrei um colégio particular, uma escola municipal, aparentemente com boa estrutura, com quadra e com dimensões bem maiores que as escolas que vejo por Ouro Preto. Desconhecia a existência de uma Policlínica no bairro. Em meio ao sobe e desce de caminhões, ônibus que leva trabalhadores de empreiteiras e gente buscando filhos na escola, encontro um senhor sentado na calçada, segurando uma bengala, observando todo o movimento. Aproveitei que estava cansado de subir a rua - que parecia não ter fim - e resolvi sentar ao lado dele. Com um sorriso de canto ele me olha e quase puxa papo. Aí eu tomo a iniciativa e digo: “É... pra subir tem que dar umas pausas, né? Senão fica difícil.”. Pronto! Foi dar abertura e Jerson, aposentado, ex-trabalhador das mineradoras da região, conta um pouco da sua história naquele intervalo rápido que fiz na subida do morro. Ele veio de Fonseca, distrito de Alvinópolis e depois que chegou à cidade se encantou com sua esposa, que é marianense, e decidiu ficar. Depois de tantos anos dedicados ao trabalho, sua distração nos fins de tardes parece ser observar o movimento intenso da avenida principal do bairro. Todas as pessoas que passavam o cumprimentavam, chamavam-no pelo nome e ele respondia chamando todas as pessoas também pelo nome. Sobe um senhor de meia idade, para com a gente e começa a falar da “tal invasão” que tem nas proximidades do bairro. Os dois não concordam com a ocupação no local chamado “Santa Clara”.

Ao continuar minha caminhada percebo que a avenida principal mantém o bairro vivo. Tem academia, farmácia, escolas, todo tipo de comércio, oficinas mecânicas, casas lotéricas e um fluxo grande pessoas circulando pelas ruas - pelo menos no horário em que eu fui. Depois de subir até o fim da avenida, já no ponto final do circular Cabanas, encontro com Vinícius no meio do caminho. Já o conhecia da época em que ele estudava no IFMG, em Ouro Preto. Tinha comentado que iria ao bairro e que passaria na casa dele se ele estivesse tranquilo. Não queria que ele descesse até o Posto Raul e subisse comigo me apresentando o bairro, pelo menos não naquele momento. Vinícius mora no Cabanas desde os dois anos de idade com seu pai, que é motorista da UNIVALE e presta serviço para as mineradoras; sua mãe, que é professora de uma creche no bairro, e suas duas irmãs, uma de aproximadamente 10 e outra de 12 anos. Ele tentou ENEM no ano passado para concorrer a uma vaga nos cursos de engenharia da UFOP, mas não foi aprovado. Depois disso, passou no vestibular no IFMG para o curso de física, mas ao entregar a documentação que comprovava a renda per capita de sua família ele não foi selecionado porque passou pelo sistema de cotas e sua renda ficou R$ 20,00 acima do limite permitido. Agora, Vinícius espera fazer o ENEM este ano e conseguir uma boa nota e, com ela, ingressar na UFOP.

Depois de um bom tempo de conversa sobre as coisas que se passaram, desde que se formou em técnico de metalurgia, no fim do ano passado, ele reclamou da falta de vagas de emprego na área e das tentativas frustradas de conseguir ingressar no mercado de trabalho. “Com essa crise eu não estou achando emprego. Nem pra trabalhar em supermercado eu tô encontrando emprego aqui em Mariana”, conta. Em seguida, ele me levou até a laje de sua casa e contou sobre as lembranças de quando as casas construídas em torno de sua casa, já quase no Parque Itacolomi, no final do Cabanas, nem existiam. Vinícius ainda se lembra da época em que as ruas eram de terra e tinha que esperar sua mãe chegar pra levá-lo até a avenida principal, na parte de baixo do bairro, para andar de bicicleta. Ele sente orgulho de morar no Cabanas e critica os amigos que dizem que o bairro é favela. “Aqui só tem “casão””. “Lá na invasão é que tinha cara de favela, mas hoje em dia lá também só tem casão”, diz. Segundo ele, no local conhecido também como Santa Clara muitos moradores do Cabanas que já possuíam casa, inclusive seu vizinho, invadiram e construíram barracos para assegurar a posse do terreno invadido. Ainda segundo ele, depois que a prefeitura notificou que demoliria as construções que não tivessem moradores, muitos construíram casas no local e alugaram suas casas no bairro Cabanas.

Depois de um bom tempo de conversa, Vinícius conta, com um sorriso no rosto, que adorava ficar soltando pipa na laje quando era mais novo. Em seguida, me mostra, lá de cima, quais são os limites entre os bairros Cabanas, Cartuxa, Vale Verde e Santa Rita. Nesse momento, percebo que o sentimento de nostalgia é visível quando ele me mostra a escola em que fez todo o ensino fundamental. Orgulhoso, ele diz que já foi a segunda melhor escola de Mariana e que ela só perdia para uma escola de um distrito que ele não lembrava o nome. A todo o tempo ele repetia: “Nossa, aquela escola era boa demais!”; “Que saudade da época que estudava lá”.

Vinícius me perguntou sobre o motivo pelo qual eu subi até lá. Como já o conhecia, falei para ele, resumidamente, sobre a proposta, inclusive sobre o curso de Cartografia e as oficinas. Ele ouviu atentamente e disse que a ideia é “legal”. Sua mãe já estava subindo nessa hora para casa com sua irmã, ele me apresentou a ela, e, em seguida, me despedi de todos eles. Quando estávamos saindo, ele disse: “Se você não se incomodar em pisar na terra, tem um caminho mais fácil”. Claro que não fiz nenhuma objeção e descobri um novo trajeto até a avenida principal do Cabanas.

Já no ônibus de volta para casa recebi a seguinte mensagem de Vinícius no meu whatsapp: “Oh, Aleone. Me esqueci de te perguntar: se precisar de alguém, tipo, para as oficinas e não precisar de ser aluno da UFOP, eu tô aqui, hein?!”. Vinícius não é uma pessoa de se acomodar fácil. Disse que fez concurso da Petrobras, tentou UFOP, passou no IF para o curso de física e continua num projeto do antigo curso de metalurgia para, segundo ele, "melhorar o currículo". Talvez, diante da possibilidade do nosso projeto ter ações em seu bairro, ele acredite que essa pode ser mais uma boa oportunidade de ampliar seus horizontes no campo profissional.

Observação: Temos que tomar cuidado para não achar que o bairro Cabanas é todo o conglomerado que vemos do centro. Tanto pelo mapa, quanto pelo o que vi hoje da laje da casa do Vinícius, são locais adjacentes ao Cabanas, com realidades distintas, apesar de serem próximos. Cabanas está no meio dos bairros Santa Rita, Vale Verde ou Cartuxa. É nele que ficam os comércios, escolas, policlínica, creche, transporte público. A região de maior vulnerabilidade social é o bairro Santa Rita.

 

 

Foto: Aleone Higidio

Segunda visita: 30 de junho

Por Aleone Higidio

 

Hoje tive uma overdose de histórias muito interessantes. De onde você menos espera podem sair fábulas, personagens, cantores, poetas e grandes histórias. Eu, como futuro jornalista, me sinto privilegiado quando alguém compartilha comigo um pouquinho da sua experiência de vida. Sonhos, medos, angústias e alegria, permeiam relatos que dariam ótimas reportagens, perfis, e, quem sabe até um documentário.

E, hoje, durante meu flanar por Mariana, conheci um poeta, que também é filósofo e cantor, que confiou a mim três canções ainda não registradas para que eu pudesse dizer às pessoas quem ele é. Seu nome é Tadeu Tibúrcio. Não vi nos olhos de Tadeu alguém que busca a fama. Vi um senhor de meia idade que tenta sobreviver em meio aos desgostos da vida. Tadeu cuidou do pai doente até a sua morte e, depois disso, o destino o trouxe para Mariana pra ficar - e cuidar - da mãe. Vi nos olhos de Tadeu um pai que ama os filhos e que por não ter dinheiro para comprar presente de aniversário compôs uma música e a dedicou a eles. Ele se diz ansioso para gravar e entregar o CD num envelope e demonstrar, mesmo que de forma simples, seu amor pelos filhos.

Curiosamente, encontrei Tadeu nos fundos de uma garagem, na subida do bairro, onde funciona o Sacolão Cabanas. E é nesse mesmo lugar que funciona também uma mercearia e boteco. O dono desse ambiente multifuncional é que fez questão de que eu conhecesse Tadeu. Seu nome é Fabiano, um senhor aposentado, brincalhão, sorridente e que afirma ser primo do poeta Carlos Drumond de Andrade.  Lá também conheci a esposa de Fabiano, que entrou de repente para oferecer um doce de beterraba com uma erva medicinal chamada tanssagem. Eu, que sou apaixonado por doces, não recusei. E foi no Sacolão Cabanas que passei horas a fio sem perceber que já estava escurecendo. Além das histórias de Fabiano, ouvi também um pouco sobre a vida do Adão, do Fernando, do de outras tantas que entraram naquela tarde no Sacolão Cabanas. Nesse dia eu só não tomei uma cachacinha com o Fabiano porque estava a trabalho, mas aceitei a gentil oferta de uma coca-cola gelada e frutas. Até porque seria uma ofensa se eu não aceitasse depois dele dizer: "Pode pegar, aqui não tem miséria!".

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